quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Elton Carvalho (1916 - 1994)


1
A consciência, tirana
que não perdoa ninguém,
é a corte mais desumana
das cortes que o mundo tem.

2
A Lua, vestindo a mata
de imaculada brancura,
é um candelabro de prata
no teto da noite escura.

3
Angústia é a mágoa escondida
dos que, amargando o sofrer,
vegetam perto da vida
sem ter direito a viver.

4
A prova do teu pecado
na carta em cima da mesa...
E um vestido abandonado
vestindo minha tristeza!

5
A esperança, na viagem,
é ter a felicidade
de chegar junto à miragem,
e a miragem ser verdade.

6
Bateu demais no Porteiro
mas, quando o foram prender,
mostrou ao Guarda o letreiro:
- Vê? NÃO ENTRE SEM BATER!

7
Brigaste, e peço desculpa
da minha culpa velada:
a culpa de eu não ter culpa,
e te sentires culpada...

8
Cara-de-pau, meu vizinho
defende o "tutu" na raça:
de dia - é um pobre ceguinho;
de noite - é chofer de praça!

9
Crianças não têm maldade...
Por melhor que a gente for,
não sabe nem a metade
do que elas sabem de amor!

10
De fantasias e imagens,
quantos castelos já fiz...
Que importa fossem miragens..
se me fizeram feliz?

11
Desfeitas minhas quimeras
por desencantos eternos,
se outros contam primaveras,
eu conto, apenas, invernos.

12
Do nosso amor, hoje, resta,
por muitos erros fatais,
minha saudade, que atesta
que um de nós sentiu demais...

13
– Doutor, assim eu não posso,
esqueço tudo, é um horror!
- Quando notou esse troço?
– Notei que troço, doutor?

14
Eis um fato verdadeiro,
que até parece mentira:
foi um pau-d'água o primeiro
a dizer que a Terra gira...

15
Ele enrolava... enrolava...
e a enrolação era tanta,
que, às vezes, quando falava,
sentia um nó na garganta!

16
Em meus passos erradios
por sinuosas estradas,
eu vou somando vazios,
numa sequência de nadas.

17
Entre a luz que o bem vislumbra
e a sombra que o mal contém,
há uma enganosa penumbra
em que o mal parece o bem...

18
Esta saudade em meu peito
é de um tempo diferente:
- um pretérito perfeito
tão passado... e tão presente!

19
É uma ilusão a desculpa
de querer culpar alguém,
quando a gente tem a culpa
das culpas que a gente tem.

20

Fala demais o Jacinto
porém já sinto a razão:
- como é que vai ser sucinto,
se ele é o Jacinto Frasão?

21

Ficou velhinho demais
o Guia do espiritismo
e, agora, nem baixa mais,
por causa do reumatismo.

22
Francamente, é um desacerto!
Bate tanto o carcamano,
que, em vez de ser um concerto,
ele escangalha o piano...

23
Há mentiras doces, belas,
que até parecem verdade;
e a maior de todas elas
se chama felicidade...

24
Hoje, a infância me recorda
esse velho amigo meu:
um palhacinho de corda
tão sem corda quanto eu!...

25
Ia um casal caminhando,
velhinho, trôpego o passo.
- Era a Saudade levando
o Passado, pelo braço...

26
Jamais será diferente
minha atitude contigo,
que a amizade é permanente:
só trai quem não era amigo.

27
–  Mas esta torta não presta,
seu garçom, está mal feita!
–  Minha senhora, ora esta!
Vai querer torta... direita?!

28
Meu ingênuo amor carrega
uma esperança insistente.
- Pobre limo que se apega
a uma pedra indiferente...

29
Na escuridão há um segredo
que apavora os que estão sós:
as próprias sombras têm medo,
e não se afastam de nós.

30
Na noite desesperada
dos fracassados, eu ponho
um pouco de luz na estrada,
em candelabros de sonho.

31
Na  solidão que me arrasa,
órfão de amor e carinho,
enchi de espelhos a casa
pra  não  me  sentir  sozinho.

32
O "esponja", ao guarda, explicando:
- Moro aqui mesmo, no centro.
Olha: as casas vão passando...
Quando for a minha... eu entro!

33
O Leite, de madrugada,
foi ver a noiva, essa não!
- Quem é? pergunta assustada.
- É o Leite.  - Põe no portão...

34
Onde é que vou-me agarrar?
- diz o pau-d'água, invocado -
se deram para botar
tudo que é poste... inclinado?

35
O nome fica explicado:
nasceu tão pequeno, tão,
que o pai, ao vê-lo mirrado,
surpreso, exclamou: - AH! NÃO!

36
O "playboy" foi reprovado,
pois sendo um cara "pra frente",
respondeu: - Metro "quadrado"...
é metro... de antigamente!

37
O pranto mais dolorido
ninguém o vê quando aflora:
a gente chora escondido,
e, algumas vezes, nem chora!

38
O rádio não vai dizer
hora certa, coisa alguma.
É só ligar para ver:
cada hora ele diz uma!

39
O Sol, coitado, é inocente,
se a seca o verde matou:
ele deu vida à semente,
foi a chuva que faltou...

40
Perdoa-me a irreverência,
Senhor, e este amargo tom:
por que me deste consciência,
sem forças para ser bom?

41
Perdoa quem, no caminho,
sem forças, tem que parar:
que culpa tem o moinho,
se o vento não quer soprar?

42
Por que te foste, querida,
por que partiste sozinha,
se eu fui pela tua vida,
e tu ficaste na minha?...

43
- Que é isso no rosto agora?
- Foi meu marido, meu bem.
- Pensei que estivesse fora...
- Pois eu pensava também!

44
Que genrinho inteligente!
Bebeu uma vez na vida,
viu duas sogras na frente,
nunca mais topou bebida!

45
Se a entrada de ano foi boa?
Pra mim, foi cheia também:
chegou a mãe da "patroa",
e eu, realmente, entrei bem!

46
Servir tem sido o meu fado.
Já balizei tantas rotas,
e, hoje, farol apagado,
sirvo de pouso às gaivotas...

47
Subindo o morro, cansado,
quase pedindo socorro,
foi que eu vi porque é chamado
aquele troço de... MORRO!

48
Trovador como ninguém,
nos concursos sou cobrão,
e acabo sempre entre os cem:
- os sem-classificação!

49
- Tu não viste uma menina
dobrando a esquina, apressada?
- Quando eu cheguei nesta esquina,
ela já estava dobrada...

50
- Uma esco-cola qualquer
de ga-gago, onde é que tem?
- Pra que que o seu gago quer,
se já gagueja tão bem?...

51
- Veio um cabelo na sopa,
seu garçon, não sou maluca!
- Só por dez cruzeiros - ôpa!
quer que venha uma peruca?

52
Vida é moinho inclemente
que nos leva de roldão
e faz dos sonhos da gente
o pó da desilusão!

53
Vivemos... E, ao fim da vida,
não sabemos quase nada:
nem se a morte é uma partida,
ou se é um marco de chegada!

54
- Vovó, sou Aparecida,
sua netinha também.
E a velhinha, distraída,
- A... parecida com quem?

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