sexta-feira, 30 de junho de 2017

Alcy Ribeiro (1920 - 2006)

1
A casa ainda é aquela...
ainda é o mesmo portão... 
na sala, a mesma aquarela
junto à mesma solidão!
2
Ao velho diz o brotinho:
"Quero fugir com você”.
Indaga o pobre velhinho:
"Fugir? Mas ... Fugir pra quê?"
3
Bates a porta ao chegar
e essa agressão não me importa.
- Eu prefiro acreditar
que o vento é que bate a porta.
4
Com ciúme, enfurecida,
deu nele tanta pancada,
que a amizade colorida
anda um pouco desbotada...
5
Com uma telefonista
casou-se um pobre coitado.
Agora, por mais que insista,
só dá “ramal ocupado”...
6
Da infância e de seus folguedos,
relembro instantes diletos,
quando sou, entre brinquedos,
brinquedo na mão dos netos!
7
De esperanças luminosas
vê se enfeita a tua mágoa:
- em meio às plagas rochosas
quase sempre há um veio d'água.
8
Deixei restos de carinho
sob insensatos protestos
e agora, triste e sozinho,
ando em busca desses restos ...
9
Depois que me abandonaste,
só te desejo um castigo:
que a insônia que me deixaste,
passe uma noite contigo!
10
Eis-me, de novo, defronte
das malhas de tua rede,
a beber da mesma fonte
que não matou minha sede...
11
Este amor traz-me ventura
num conflito que alucina:
Faz com que eu, mulher madura,
tenha sonhos de menina...
12
Fiz uma trova tão linda
para a flor que ele me deu...
Eu conservo a flor ainda
mas a trova ele esqueceu...
13
Foram risadas de estrondo
quando o pobre Waldemar
quis envelope redondo
para a "Carta Circular"...
14
Janela fechando e abrindo,
batendo a todo momento,
parece estar aplaudindo
a dança infernal do vento!
15
Mais triste que um céu cinzento,
mais cruel que a própria dor,
é aquele amor de momento,
sem mais momentos de amor!
16
Meu coração chora a perda
de momentos sedutores,
por ter sido um zero à esquerda
na soma de teus amores.
17
Muitos, fugindo aos fracassos,
têm, nas ingênuas conquistas,
o destino dos palhaços
imitando trapezistas...
18
Na humildade do meu ninho,
com teu amor que me enleia,
meu jantar de pão e vinho
tem ares de Santa Ceia!
19
Na liberdade pensando,
exulto com alegria,
vendo um pássaro cantando
e uma gaiola vazia.
20
Na minha doce ilusão,
ser uma trova eu queria,
aquela que tua mão
sem tremer assinaria.
21
Não há maior desengano
ferindo nosso saber,
do que ouvir um ser humano
revelar: “Eu não sei ler”.
22
Não há nada que esmoreça
o brasileiro animado:
- tá levando na cabeça
mas, polegar levantado!...
23
Na igreja, menina arteira,
- não é coisa que se enquadre -
mas... quase que vira freira, 
ao saber quem era o padre...
24
Na paixão em que me abraso
tanto sol tem minha estrada,
que eu não troco o meu ocaso
pela mais linda alvorada!
25
Na prece tenho as respostas
da fé que perdura em mim:
tal como a cruz, não tem costas!
Tal como Deus, não tem fim!
26
Nos teus olhos rasos d’água,
sem ser pintor, eu pintei
uma aquarela de mágoa
com as mágoas que te dei.
27
Num capricho alucinado,
em vindoura encarnação,
eu quero ser o pecado,
se tu fores meu perdão!
28
O calor da mocidade
e os riscos da meninice
deixam brasas de saudade
sob as cinzas da velhice.
29
O pecado nos perdeu
e eu paguei logo depois.
Por que o castigo é só meu,
se a culpa foi de nós dois?
30
Os dilemas venceremos
com firmeza em nossos passos:
- remador que perde os remos
faz remos dos próprios braços...
31
Que idade tens? E eu, risonho,
respondo, sem me abalar:
- Eu tenho a idade que o sonho
permite um sonho sonhar!
32
Se acaso, um dia, escutares
na tua porta um lamento,
é o pranto dos meus pesares
gemendo na voz do vento.
33
Se em vez do bem que fizeste,
todo mal me houvesses dado,
- pela filha que me deste,
estarias perdoado!
34
Só hoje, de alma cansada,
sei minhas preces de cor:
é no fim da caminhada
que a gente reza melhor!
35
Só mesmo como piada
"pão dormido" não engorda,
pois na primeira dentada
é claro que o pão acorda!
36
Sou tímida, na verdade,
e você já percebeu .
Porém ... beije-me à vontade
porque a tímida sou eu...
37
Tão carinhosa ela é,
que, num amor desmedido,
chega a fazer cafuné
na peruca do marido.
38
Tua ausência, na verdade,
não traduz nenhum castigo:
vou me abraçando à saudade
até me encontrar contigo.
39
Tu partes com tal freqüência
que, embora em meio às promessas,
persiste um sabor de ausência
toda vez que tu regressas.
40
Vai, coração, vai teimoso,
vai por aí a bater
por um outro, mentiroso,
que finge por ti bater.
41
Vens... não vens... e nessa espera,
o meu pranto vai deixando,
no mal que me desespera,
o bem de estar te esperando!
42
Vi, na magia de um bumbo,
enquanto ele ressoava,
os soldadinhos de chumbo
de um quartel que eu comandava...

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