terça-feira, 14 de março de 2017

João Rangel Coelho (1897 - 1975)


1
A angústia que mais me aterra,
neste mundo assim medonho,
é sentir-me preso à terra,
tendo asas para o sonho.
2
A ausência vale, em verdade,
como teste de valor:
- mede, através da saudade,
a fibra de um grande amor!
3
A chuva embala quem sofre...
Quando chove como agora,
a gente abre um velho cofre,
lê velhas cartas e chora...
4
Aérea, fluída de gaze,
corpo volátil de essência
sua presença era quase
como se fosse uma ausência.
5
A justiça imaculada,
tendo no céu as raízes,
não pode ser acusada
dos erros dos maus juízes.
6
A lágrima é um pingo d'água,
Irizado e transparente:
- A bailarina da mágoa
dançando no olhar da gente.
7
Ante as cantigas de roda
das crianças no jardim,
a minha infância vem toda
cantar também dentro em mim.
8
Ao ver-te sobre os embalos
do seu Packard, eu sussurro:
"Um carro de cem cavalos
guiado por um só burro"…
9
Aquela moça, tão casta,
bebe muito... E a gente vê,
ante a barriga que arrasta,
que o seu caso é de... bebê…
10
Aqui repousa, sem tédio,
esse doutor eminente,
porque tomou o remédio
que receitara a um cliente...
11
As  reticências, com a gaze
de sua móbil perícia,
são bailarinas da Frase,
para o ballet da Malícia..
12
A tua mão cor de neve,
frágil lírio delicado,
pousou na minha, de leve,
para este adeus tão pesado!
13
A vida é mar inclemente,
amargo, cheio de mágoas,
que põe nos olhos da gente
o gosto das suas águas.
14
A vida é onda encrespada
por onde a gente, a nadar,
nada, nada, nada, nada,
até ao nada chegar!
15
A vida, frágil espuma,
volátil como as essências,
nos lembra um ai que se esfuma
vagamente, em  reticências…
16
Ciumento, com fúria louca,
às vezes penso, afinal,
que beijas na minha boca
a boca de um meu rival.
17
Criança! O medo me invade
ao ver, ingênuo e profundo,
o teu olhar sem maldade
ante a maldade do mundo.
18
Das dores que me consomem,
eis a que mais me espezinha:
ver que há de ser de outro homem
quem nasceu para ser minha.
19
Das rodas da gente honrada
sempre enxotado como és,
já deves ter calejada
a zona dos pontapés...
20
Deixei aberta a janela
desta minha alma sonora...
A saudade entrou por ela
e nunca mais foi-se embora.
21
Enquanto o tempo se vinga,
anoitecendo as auroras,
o velho relógio pinga
as  reticências das horas…
22
Filhinho meu, ó meu sonho,
clarão dos meus olhos baços,
tendo-te ao colo, suponho
que tenho o mundo nos braços.
23
Há no silêncio das plantas,
a germinar pelas leivas,
o grito de mil gargantas,
numa algazarra de seivas.
24
Há presente, em minha sorte,
uma angústia indefinida...
Não é bem medo da morte;
é, talvez, medo da vida!
25
"Hoje estás outro!" e a boca
beijou-me, falando assim.
 "Eu... outro? Que coisa louca!"
Tive ciúmes de mim!
26
Marejaram pequeninas
nos seus olhos rasos d’água,
três lágrimas cristalinas:
- As reticências da Mágoa...
27
Maria Clara não poupa
gastos com a moda. Morou?
E vai gastando com roupa
o que, sem ela, ganhou...
28
Mesmo na treva mais densa,
seu estro tais luzes leva
que, trovador de nascença,
a trova lhe trava a treva.
29
Morre, nostálgico, o dia...
E, ao vê-lo morrer, me ocorre
ter a mesma nostalgia
da hora em que o dia morre..
30
Nas ânsias insatisfeitas
dos mais frustrados esforços,
certas angústias são feitas
com retalhos de remorsos.
31
Nas brancas ruas caiadas,
da terra do sono infindo,
as portas estão fechadas
e todos estão dormindo...
32
Na sua infinita mágoa,
vindo da fonte, em que medra,
a fibra da gota d'água
perfura, aos poucos, a pedra.
33
No teu quarto, de joelho
curvado à beleza tua,
tenho ciúmes do espelho
que já te viu toda nua.
34
Numa alegria incontida,
sou bem feliz, porque ponho,
na taça escura da vida,
o claro vinho do sonho!
35
O cura de Santarém
é milagroso de fato:
os afilhados que tem
são-lhe o perfeito retrato...
36
Ó filhinha que me encanta,
que me acarinha e me quer!
Há de ser mulher e Santa,
mais Santa do que Mulher!
37
O mar imenso e profundo
vai gemendo, sem parar...
Todo gemido do mundo
geme no fundo do mar!...
38
O mundo! Dele me escondo
com pudicícia e recato.
Dizem que o mundo é redondo,
mas está ficando chato...
39
Os homens armam-lhe engodos...
E ela, longínqua e modesta,
passa, intocada, entre todos,
com a fibra de ser honesta.
40
Os séculos e os milênios
não apagam na verdade,
a fibra clara dos gênios,
ungidos de eternidade.
41
Papai Noel, como, explicas
teus gestos nem sempre nobres?
Dás tudo, às, crianças ricas,
e nada às crianças pobres.
42
Para consolo da gente,
na vida, luta que cansa,
há uma vitória latente
dentro de cada esperança.
43
Por que meu fado se atreve
a dar-me após a desdita,
para um amor que foi breve
esta saudade infinita?
44
Sendo o amor uma batalha,
sentimos que, em sua trama,
não há vitória que valha
a rendição de quem ama.
45
Senhora, que tenho em mira!
Por amar-vos, para ter-vos,
em vez das cordas da lira,
tanjo as fibras dos meus nervos!
46
Senhor Deus, ó Pai dos pais!
Por que motivo consentes
entre teus filhos iguais,
destinos tão diferentes?...
47
Se o Mar,com os dedos das ondas,
vem em delírio afagar
as tuas formas redondas,
tenho ciúmes do Mar.
48
Tenho a fibra dos audazes.
Mas tu, menina, tão mansa,
da minha fibra é que fazes
teu brinquedo de criança.
49
Toda saudade consiste
neste contraste evidente:
uma alegria tão triste
numa ausência tão presente.
50
"Todo animal é imperfeito!"
Afirma o José de Tal.
(Só o homem, no seu conceito,
é que é um perfeito animal.)
51
Se tu és rico e eu mendigo,
ao morrermos tu mais eu,
não levas nada contigo
e eu levo tudo o que é meu...

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