quarta-feira, 3 de abril de 2019

Lilinha Fernandes (1891 - 1981)


A aurora corou de pejo
naquele claro arrebol,
sentindo na face o beijo
da boca rubra do Sol.

A cordilheira hoje à tarde,
de um verde claro e bonito,
era um colar de esmeraldas
no pescoço do infinito.

A definição exata
do remorso, está patente:
fino punhal que não mata
mas tira a vida da gente.

A Inveja dorme na rede
da Injustiça, sua amiga;
do Mal se alimenta, e a sede
mata na fonte da Intriga.

Amei e não fui amada...
Minha alma encheu-se de dor.
E fui tão desventurada
que não morri desse amor.

A modéstia não se ostenta,
se esconde e é pressentida:
a presunção se apresenta
e passa despercebida.

Ao amor fiel, que não minta,
a palavra injuriosa
é como um borrão de tinta
manchando tela famosa.

"A traição é a própria vida."
É a violeta que assim fala,
porque se esconde e é traída
pelo perfume que exala.

A um cego alguém perguntou
vendo-o só: - Que é de teu guia?
E ele sorrindo mostrou
a cruz que ao peito trazia.

Chorei na infância insofrida
para na roda ir cantar.
Hoje, na roda da vida,
eu canto pra não chorar.

Da morta felicidade
guarda a saudade dorida,
pois quem tem uma saudade
tem muita coisa na vida.

Da tua vida a viagem
se é triste o pintor imita,
 que da mais tosca paisagem
faz a tela mais bonita!

Desejei fogo atear
ao mundo por onde trilho,
vendo uma cega indagar
como era o rosto do filho.

Dizem que o amor é feitiço,
é mágoa, alegria e dor.
- Mas se amor não fosse isso,
que graça teria o amor?

Do nosso amor acabado
não pode esquecer a gente,
porque a saudade é o passado
que nunca sai do presente.

Do violão o segredo
de imitar os passarinhos,
é já ter sido arvoredo
e abrigo de muitos ninhos.

É assim a boca do mundo
que vigia nossas portas:
esconde nossos triunfos,
propala nossas derrotas.

És de beleza um portento,
no perfil, nas formas puras.
Mas beleza sem talento
é um palácio às escuras.

Esperança, és bandoleira,
mas és também sol doirado,
de luz a única esteira
na cela de um condenado.

Esses teus olhos rasgados,
muito azuis, muito leais,
são miosótis deitados
em vasos originais.

Eu canto quando a saudade
me fere com seu desdém.
O canto é a modalidade
mais bela que o pranto tem.

Eu comparo o arrependido
que o perdão vê numa cruz,
ao viandante perdido
que avista, ao longe uma luz.

Eu não bebia... te juro!
Beijei-te, então, podes crer:
foi teu beijo, vinho impuro,
que me ensinou a beber.

Feliz nunca fui! Sem crença,
procuro a felicidade,
como o cego de nascença
que quer ver a claridade.

Há muita gente cativa
neste mundo, como eu,
que vive porque está viva,
no entanto, nunca viveu.

Lua e Saudade - rendeiras
da dor que com a ausência vem,
se vós não sois brasileiras,
pátria não tendes também.

Mãe: nem um tálamo nobre
esquecerei, sem mentir,
aquele bercinho pobre
que embalavas pra eu dormir.

Mãe: por mais que um filho aprenda,
sempre esquece que sois vós
a única fonte de renda
que paga imposto por nós.

Manhã. O Sol é um botão
de fina prata dourada,
abotoando o roupão
todo azul da madrugada.

Meus filhos! ... Minha alegria!
Dentro da minha pobreza,
nunca pensei ter um dia
tão opulenta riqueza!

Minha casa pobre, é rica!
Mesmo no escuro tem brilhos;
porque o amor a santifica,
porque a iluminam meus filhos.

Minha netinha embalando,
da alegria sigo os passos.
Julgo-me o Inverno cantando
com a Primavera nos braços.

Morre o poeta. Em oração
se escutam vozes bizarras.
- Ã? a missa que as cigarras
celebram por seu irmão.

Não me odeias nem me queres...
Meu Deus! Que tortura imensa!
Mais do que o ódio, as mulheres
detestam a indiferença.

Não peço um prazer sequer
à vida que à dor se iguala.
Já faz muito se me der
coragem pra suportá-la.

Na velha igreja te ouço
sino alegre ... Estás dizendo
que há muito coração moço
em peito velho batendo.

No meu viver triste e escuro,
na minha sede de amar,
és aquele que eu procuro
e não me quer encontrar.

No trabalho em que me escudo,
lutando para viver,
tenho tempo para tudo,
menos para te esquecer.

Num beijo fez imortal
o nosso amor sem ressábios:
um romance original
escrito por quatro lábios.

Num voo de pomba mansa,
quisera ir ao céu saber
qual o crime da criança
que é condenada a nascer.

Nunca maldigas teu fado.
Confia em Deus, firmemente.
O arvoredo mais copado
já foi humilde semente.

O amor que brinca com a sorte,
que é sempre chama incendida,
é o que vai além da morte!
- Não há dois em toda a vida!

O mar que geme e palpita
no seu tormento profundo,
é uma lágrima infinita
que Deus chorou sobre o mundo.

O tempo passa voando ...
Mentira, posso jurar.
Se estou meu bem esperando,
como ele custa a passar!

O vento que atro zunia,
queria a noite açoitar;
e a noite, calma, dormia
no regaço do luar.

Para ingratos trabalhando,
de santo prazer me inundo,
pois, perdendo vou ganhando
a maior glória do mundo.

Para rimar com teu nome,
que é do céu a obra-prima,
mãe, não existe um vocábulo!
Nem mesmo Deus achou rima.

Partiste ... Ficou-me n'alma
tua voz suave e pura...
- Ave a cantar sobre a calma
da mais triste sepultura.

Pensei fazer um feitiço
para esquecer-te, mas vi
que de tanto pensar nisso
é que penso mais em ti.

Podem subir os felizes!
Agarro-me ao solo, em festa.
- Se não fossem as raízes,
que seria da floresta?

Pra que eu te esqueça, não tenhas
confiança em teu desdém:
quanto mais de mim desdenhas,
quanto mais te quero bem.

Pra quem é mãe não existe
bem de mais funda raiz,
que o de viver sempre triste,
mas ver seu filho feliz.

Procurar-te, eu? que loucura!
Olha, eu te vou confessar:
de mim mesma ando à procura
e não consigo me achar.

Quando tu passas na estrada,
dentro de casa adivinho:
é teu passo uma toada
musicando teu caminho.

Que bom quando todos deixam
na casa o silencio agir,
e os dedos do sono fecham
meus olhos, para eu dormir.

Que eu tive felicidade,
minha saudade vos diz,
pois só pode ter saudade
quem já foi multo feliz!

Quem é do dever escravo
e não faz coisas a esmo,
pode dizer que é um bravo
e o próprio rei de si mesmo.

"Que levas tu na mochila?"
Diz ao corcunda um peralta.
E o corcunda: - "A alma tranquila
e a educação que te falta."

Quem não tem ouro disperso,
nem prata velha na mão,
paga com o níquel do verso
as contas do coração.

Quem - seja nobre ou plebeu -
no Bem sua vida encerra,
sem estar dentro do céu,
está acima da terra.

Quem vive em casa ou nas ruas,
chagas alheias curando,
nem se apercebe que as suas
foram sozinhas fechando.

Que o mundo acabe, no fundo,
não me causa dissabor,
pois vivo fora do mundo,
no meu mundo de amor.

São meus ouvidos dois ninhos
onde guardo, ao meu sabor,
um bando de passarinhos!
- Tuas mentiras de amor.

Saudade é assim como fado
lembrando quem vive ausente:
é um suspiro do passado
na garganta do presente.

Sem ti, que treva cerrada
pelos caminhos que trilho!
Sou como a Lua apagada
que, sem o Sol, não tem brilho.

Se o bem não podes fazer,
o mal não faças também,
que o bem já faz sem saber,
quem não faz mal a ninguém.

Se ouvisse o homem da terra,
de Deus o conselho amigo,
em vez de campos de guerra
faria campos de trigo.

Se te vais, que dor imensa!
Mas s e vens, meu grande amor,
ante a tua indiferença
cresce mais a minha dor.

Sofres no céu, Mãe querida,
sentindo, ao ver minha sorte,
que me pudeste dar vida
e não me podes dar morte!

Sua cruz que eu sei pesada,
minha mãe leva sozinha.
Mesmo assim, velha e cansada,
me ajuda a levar a minha.

Tua ironia maldosa,
do amor não me, apaga o lume:
Procura esmagar a rosa,
vê se não fica o perfume.

Vejo teu rosto, formosa,
e o corpo - graça profana -
como se visse lima rosa
num jarro de porcelana.

Velho em trajes de rapaz
dá a impressão, diz o povo,
de um livro antigo demais
encadernado de novo.

Ventura, é coisa sabida,
seja muita ou seja escassa,
se não for interrompida
perde a metade da graça.

Vida e morte vão andando
no mesmo campo a lutar.
A primeira semeando,
para a segunda ceifar.

Fonte:
Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge . 100 Trovas de Lilinha Fernandes. vol. 2.RJ: Ed. Vecchi, 1959. Coleção Trovadores Brasileiros

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